A Política Nacional de Demências e seus desdobramentos

Eduardo Hostyn Sabbi
Médico psiquiatra pós-graduado em hotelaria hospitalar pelo Hospital Mãe de Deus/Centro Universitário Metodista-IPA; mestre em ciências da saúde pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre; presidente da ABRAz - Regional RS; professor responsável pela disciplina de psiquiatria geriátrica do Instituto Abuchaim e do Centro de Estudos José de Barros Falcão; professor titular do Cyro Martins e do IBCMED.

Christine Abdalla
Consultora em envelhecimento e moradia coletiva e assistida; gestora presidente da ILPI Associação Convivência Vila do Sol – RJ; pós-graduada em gerontologia, cuidados paliativos e gestão da qualidade em saúde; coordenadora regional e coordenadora do Grupo de Trabalho Qualidade do Cuidado da FN-ILPI; membro fundadora da Associação Cuidadosa

Karla Giacomin
Médica geriatra; doutora em Ciências da Saúde (Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz); coordenadora da Frente Nacional de Fortalecimento à Instituição de Longa Permanência para Idosos; vice-presidente e diretora técnica do International Longevity Centre – Brasil; membro pesquisador do Núcleo de Estudos em Saúde Pública e Envelhecimento (NESPE - Fiocruz/UFMG); consultora da Organização Mundial da Saúde para Políticas Públicas relacionadas ao Envelhecimento e para Cuidados de Longo Prazo; presidente do Conselho Nacional dos Direitos do Idoso (gestão 2010-2012)
A Alzheimer’s Disease International (ADI) tem trabalhado exaustivamente em busca de consolidação de informações e disseminação do conhecimento ao redor do mundo, de forma a minimizar os impactos da doença em franco crescimento. A estimativa global é de que 75% destas pessoas não são diagnosticadas e até 85% não estão acessando cuidados pós-diagnósticos.1 Por sua vez, “a redução de riscos é um componente essencial do trabalho global da ADI no pleito por políticas públicas para pessoas que vivem com demência e suas famílias, especialmente em torno da conscientização e do aumento da compreensão sobre a doença.”2
O relatório anual de 2023 da revista The Lancet apontou 12 fatores de risco modificáveis para demências: baixo nível educacional, consumo excessivo de álcool, depressão, diabetes, falta de atividade física, falta de contato social, hipertensão, lesões graves na cabeça, obesidade, perda de audição, poluição do ar e tabagismo. 3, 4 Este ano foram incluídos no relatório dois novos itens: colesterol alto e perda de visão.5
Conforme a Organização Mundial de Saúde (OMS), o número de pessoas acometidas pela doença de Alzheimer (DA) deve passar dos cerca de 55 milhões em 2019 para 139 milhões até 2050, com 60% dos afetados residindo em países de baixa e média renda. Hoje a DA é a sétima principal causa de morte em todo o mundo.1 Contudo, dos 194 estados-membros da OMS que concordaram em elaborar e implementar planos de governo voltados para a prevenção e tratamento da condição em 2017, apenas 39 haviam implementado um plano de ação e 27 ainda estavam em fase de desenvolvimento da estratégia até o ano passado.1
No Brasil, os números também chamam a atenção: segundo o estudo ELSI-Brasil, coordenado pela médica Cleusa Ferri da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em 2019, cerca de 2,27 milhões de pessoas viviam com algum comprometimento cognitivo e 1,76 milhão de pessoas com algum tipo de demência no país. A estimativa é que esse número chegue a 5,5 milhões em 2050.6
Portanto, não restam dúvidas de que se trata de um importantíssimo problema de saúde pública, que exige urgente atenção dos governantes. Para uma mudança de hábitos da população, são necessários interesse genuíno e suporte continuado do Estado em educação, pesquisa, saúde e meio ambiente, juntamento com o engajamento de vários setores da sociedade e da própria comunidade.
No Brasil, tivemos um importante avanço a partir da aprovação da Política Estadual de Enfrentamento à Doença de Alzheimer e outras Demências no Estado do Rio Grande do Sul (RS), através da Lei Ordinária Nº 15820/2022, com os esforços do geriatra Leandro Minozzo, apoiado pelas regionais da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG) e da Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAz).7 Tal cenário, acrescido da criação de grupos multidisciplinares de experts na coleta de dados e das ações do pesquisador Eduardo R. Zimmer – que buscou junto ao Governo do Estado do RS a aquisição de tecnologias diagnósticas de ponta a serem aplicadas no Sistema Único de Saúde (SUS) – foi reconhecido como exemplo brasileiro na publicação From Plan to Impact VII - Dementia at a crossroads da ADI em maio de 2024.1
Seguiu-se então uma força tarefa de várias instituições ligadas ao tema, como a Federação Brasileira das Associações de Alzheimer (Febraz), a ABRAZ e a SBGG para que, em junho de 2024, finalmente fosse aprovada a Política Nacional de Enfrentamento à Doença de Alzheimer e Outras Demências, através da Lei Nº 14878/2024.8
As dez diretrizes propostas e os oito princípios fundamentais constantes na lei são muito interessantes e abrangentes e podem ser vistos no quadro abaixo:
Diretrizes | Princípios fundamentais |
I - construção e acompanhamento de maneira participativa e plural; | I - integração dos aspectos psicológicos e sociais ao aspecto clínico no cuidado da pessoa acometida pela doença de Alzheimer ou outras formas de demência; |
II - adoção de boas práticas em planejamento, gestão, avaliação e divulgação da política pública; | II - oferta de sistema de apoio para ajudar a família a lidar com a doença do paciente em seu próprio ambiente; |
III - visão permanente de integralidade e interdisciplinaridade; | III - oferta de sistema de suporte para ajudar os pacientes a viverem o mais ativamente possível; |
IV - apoio à atenção primária à saúde e capacitação de todos os profissionais e serviços que a integram; | IV - uso de abordagem interdisciplinar para avaliar as necessidades clínicas e psicossociais das pessoas com demências, de seus familiares e, em especial, do cuidador; |
V - uso da medicina baseada em evidências para o estabelecimento de protocolos de tratamento, farmacológico ou não; | V - incentivo à formação e à capacitação de profissionais especializados no atendimento à pessoa com doença de Alzheimer ou outras demências; |
VI - articulação com serviços e programas já existentes, criando uma linha de cuidado em demências; | VI - estímulo à pesquisa científica, com prioridade para estudos clínicos e terapias relativas ao tratamento da doença de Alzheimer e de outras demências; |
VII - observância de orientações de entidades internacionais e especificamente do Plano de Ação Global de Saúde Pública da Organização Mundial da Saúde em Resposta à Demência; | VII - oferta de ferramentas e de capacitação para o diagnóstico oportuno da doença de Alzheimer e de outras demências; |
VIII - estímulo de hábitos de vida relacionados à promoção da saúde e à prevenção de comorbidades; | VIII - promoção da conscientização acerca da detecção precoce de sinais e sintomas sugestivos da doença de Alzheimer e de outras demências, bem como provimento de informações à população acerca dessas enfermidades nas mais variadas modalidades de difusão de conhecimento. |
IX - garantia do uso de tecnologia em todos os níveis de ação, incluídos o diagnóstico, o tratamento e o acompanhamento do paciente; | |
X – descentralização. |
Os desafios são enormes a todos os setores envolvidos na articulação desta nova política. Novas pesquisas têm trazido importantes contribuições para o diagnóstico, estadiamento e tratamento das demências, ao mesmo tempo em que os custos não são baixos. Tudo isso, aliado ao envelhecimento populacional e às carências já existentes em nosso país, torna ainda mais complexa a missão de zelar pelo cuidado integral das pessoas com Doença de Alzheimer e outras demências.
Não obstante a isso, o mais recente relatório da ADI, publicado em setembro de 2024, reforça a necessidade de trabalharmos o estigma que recai sobre as pessoas com demência. O desconhecimento e o preconceito social produzem dados alarmantes. O número global de pessoas que acreditavam que a demência é parte normal do envelhecimento subiu de 66 para 80% de 2019 para cá e, entre profissionais de saúde, de 62 para 65%. Enquanto isso, 88% das pessoas que vivem com demência experienciaram algum tipo de discriminação, número que em 2019 era de 83%. O impacto também avança sobre familiares e cuidadores, afetando a qualidade de vida e elevando os níveis de solidão para todos os envolvidos.9

É importante alertar também para o fato de que muitas pessoas com demências demandam cuidados que são ofertados no domicílio e no contexto institucional, embora o cuidado na ILPI não esteja previsto na Lei Nº 14878/2024. A necessidade de política de cuidados dirigida a esta população e a inclusão da ILPI como um dos lócus deste cuidado pelas políticas públicas é urgente. Mas para isso, a sociedade deve reconhecer que as famílias com pessoas com demências precisam ser apoiadas e identificar a ILPI como um local de cuidado, não de abandono.
Finalmente, o comprometimento dos governantes e da população será fundamental para que haja êxito na execução da lei, a fim de que ela não se torne apenas mais uma legislação simbólica num país cheio de leis compridas e solenemente descumpridas pelo Estado brasileiro.
Referências bibliográficas:
ALZHEIMER’S DISEASE INTERNATIONAL. From plan to impact VII: Dementia at a crossroads. London: Alzheimer’s Disease International. Published online. 2024. 80p. Disponível em: https://www.alzint.org/resource/from-plan-to-impact-vii/. Acesso em: 16/09/2024.
LONG, S.; BENOIST, C.; WEIDNER, W. World Alzheimer Report 2023: Reducing dementia risk: never too early, never too late. London, England: Alzheimer’s Disease International. Published online. 2023. 96p. Disponível em: https://www.alzint.org/resource/world-alzheimer-report-2023/. Acesso em: 16/09/2024.
LIVINGSTON, G. et al. Dementia prevention, intervention, and care. Lancet. 2017 Dec 16;390(10113):2673-2734. doi: 10.1016/S0140-6736(17)31363-6. Epub 2017 Jul 20. PMID: 28735855.
LIVINGSTON, G. et al. Dementia prevention, intervention, and care: 2020 report of the Lancet Commission. Lancet. 2020 Aug 8;396(10248):413-446. doi: 10.1016/S0140-6736(20)30367-6. Epub 2020 Jul 30.
LIVINGSTON. G.; HUNTLEY. J.; LIU K. Y.; et al. Dementia prevention, intervention, and care: 2024 report of the Lancet standing Commission. The Lancet 2024; published online July 31. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(24)01296-0.
FERRI, C. P. et al. Prevalence of Dementia and Cognitive Impairment No Dementia in a Large and Diverse Nationally Representative Sample: The ELSI-Brazil Study. J Gerontol A Biol Sci Med Sci. 2023 Jun 1;78(6):1060-1068. doi: 10.1093/gerona/glad025. Disponível em: https://academic.oup.com/biomedgerontology/article/78/6/1060/6995432. Acesso em: 16/09/2024.
RIO GRANDE DO SUL. Lei Ordinária Estadual Nº 15820/2024. Institui a Política Estadual de Enfrentamento à Doença de Alzheimer e outras Demências no Estado do Rio Grande do Sul e dá outras providências. Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. 2022 Disponível em: https://ww3.al.rs.gov.br/legis/M010/M0100018.asp?Hid_IdNorma=72547. Acesso em: 16/09/2024.
BRASIL. Lei 14878/2024. Institui a Política Nacional de Cuidado Integral às Pessoas com Doença de Alzheimer e Outras Demências; e altera a Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993 (Lei Orgânica da Assistência Social). Diário Oficial da União. Seção 1, Brasília, DF, Ed. 106, p 1. 05 jun. 2024. Disponível em https://www.in.gov.br/web/dou/-/lei-n-14.878-de-4-de-junho-de-2024-563681727. Acesso em: 16/09/2024.
ALZHEIMER’S DISEASE INTERNATIONAL. 2024. World Alzheimer Report 2024: Global changes in attitudes to dementia. London, England: Alzheimer’s Disease International. Published online. 2024. 176p. Disponível em: https://www.alzint.org/resource/world-alzheimer-report-2024/ . Acesso em: 20/09/2024.
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