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ODONTOGERIATRIA

Lilian Liang

Com a boca no trombone: um alerta sobre a saúde bucal do idoso



Introdução

A saúde bucal da população idosa apresenta desafios significativos em nível global. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a perda total de dentes (edentulismo) afeta cerca de 350 milhões de pessoas, enquanto 1 bilhão sofre de doenças periodontais graves. Além disso, 2,5 bilhões de pessoas têm cáries dentárias não tratadas. Essas condições são mais prevalentes em países de renda média e baixa, onde o acesso a cuidados dentários é limitado. O impacto econômico das doenças bucais é imenso, com gastos globais superiores a US$ 380 bilhões por ano.


A disparidade no acesso a cuidados de saúde bucal é notável, com os idosos em situações mais vulneráveis sendo os mais afetados. A OMS aponta que as doenças bucais, muitas vezes negligenciadas, têm um impacto profundo na qualidade de vida dos idosos, interferindo na alimentação, na comunicação e na autoestima. A falta de dentes, por exemplo, pode levar à má nutrição e ao isolamento social, aumentando o risco de outras complicações de saúde.


A OMS enfatiza a importância de políticas de saúde pública que integrem a saúde bucal nos programas de cobertura universal, especialmente para os idosos. Isso inclui a promoção do uso de fluoreto, o acesso a cuidados preventivos e a educação contínua sobre práticas de higiene bucal. Tais medidas são cruciais para reduzir a carga das doenças bucais e melhorar a qualidade de vida dessa população, promovendo um envelhecimento saudável e ativo.


Esse enfoque global na saúde bucal dos idosos é vital para lidar com as desigualdades existentes e garantir que os avanços em saúde sejam acessíveis a todos, independentemente de sua localização geográfica ou situação socioeconômica​.


Saúde bucal do idoso no Brasil 

O levantamento SB Brasil 2010 revelou dados alarmantes sobre a saúde bucal dos idosos no Brasil. Entre as principais conclusões, destacam-se:


- Perda dentária: 93% dos idosos entre 65 e 74 anos sofreram perda dentária, com uma média de 20 dentes perdidos por indivíduo.

- Edentulismo: 34% dos idosos são totalmente edêntulos, ou seja, não possuem nenhum dente natural.

- Cáries: 85% dos idosos têm histórico de cárie.

- Doenças periodontais: afetam cerca de 70% dessa população.


O SB Brasil 2010 também revelou que as doenças bucais nos idosos vão além da perda dentária e edentulismo. Cerca de 85% dos idosos apresentam cáries, o que indica uma carência significativa de cuidados preventivos e tratamento adequado ao longo da vida. Além disso, 70% dos idosos sofrem de doenças periodontais, que podem levar a perda de dentes e outras complicações sistêmicas se não tratadas. O levantamento também destacou a alta prevalência de próteses dentárias mal adaptadas ou não funcionais, o que contribui para a baixa qualidade de vida dos idosos. Esses resultados sublinham a urgência de intervenções em saúde bucal voltadas para essa população, incluindo a ampliação do acesso a cuidados preventivos e tratamentos adequados, bem como a promoção de hábitos de higiene bucal desde a juventude para prevenir tais problemas na terceira idade.


Além dos problemas já mencionados, o SB Brasil 2010 revelou que uma parte significativa dos idosos brasileiros, apesar de utilizarem próteses dentárias, muitas vezes enfrentam dificuldades devido à sua má adaptação. Isso contribui para problemas como desconforto, dificuldades na mastigação e na fala e até isolamento social. O levantamento também indicou que muitos idosos relataram falta de acesso a serviços odontológicos regulares, o que agrava ainda mais os problemas de saúde bucal nessa faixa etária. A necessidade de políticas públicas que abordem essas questões é clara, tanto para melhorar o acesso aos cuidados quanto para educar sobre saúde bucal desde as fases iniciais da vida.


O estudo também destacou disparidades regionais e socioeconômicas, mostrando que idosos de regiões menos favorecidas e com menor nível de escolaridade tendem a apresentar piores condições de saúde bucal. Isso reforça a necessidade de intervenções específicas que considerem as características demográficas e socioeconômicas da população idosa brasileira.


Finalmente, o levantamento sugere que as políticas de saúde pública devem não apenas focar no tratamento, mas também na prevenção, incentivando hábitos saudáveis e proporcionando o acesso regular a cuidados odontológicos de qualidade, o que poderia reduzir significativamente a prevalência dessas condições em futuros levantamentos. O próximo já está em fase final de lançamento e publicação, que é o SB Brasil 2020.


Programa BRASIL SORRIDENTE

O documento "Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal" de 2004 estabelece um marco importante para a saúde bucal no Brasil, promovendo a integração dessa área à saúde coletiva, com ênfase em políticas públicas e na promoção da autonomia dos cidadãos. Ele destaca a necessidade de ações coordenadas, que incluam desde a fluoretação da água até cuidados odontológicos básicos, com uma visão abrangente que vai além do tratamento curativo, visando a prevenção e a educação em saúde.


Para os idosos, as diretrizes são especialmente detalhadas, reconhecendo a saúde bucal como um fator crucial para a manutenção da qualidade de vida nessa faixa etária. O documento recomenda a organização de grupos de idosos nas unidades de saúde e instituições, onde possam ser desenvolvidas atividades de educação e prevenção específicas para essa população. Além disso, enfatiza a necessidade de garantir atendimento clínico individualizado, evitando filas e burocracias que dificultem o acesso dos idosos aos serviços odontológicos. Para tanto, sugere-se a reserva de horários e dias específicos para o atendimento desse grupo, sempre em conformidade com o Estatuto da Pessoa Idosa.


Outra recomendação importante é a aplicação de tecnologias inovadoras, como o tratamento restaurador atraumático (ART, na sigla em inglês) e procedimentos periodontais de menor complexidade, que são vistos como ferramentas estratégicas para ampliar o acesso e a cobertura dos serviços de saúde bucal. Essas abordagens menos invasivas e de maior impacto são sugeridas como alternativas eficazes para garantir que um maior número de idosos possa se beneficiar dos cuidados odontológicos, contribuindo assim para a melhoria da saúde e bem-estar geral dessa população.


O documento, portanto, não apenas reconhece a importância da saúde bucal para a qualidade de vida dos idosos, mas também propõe medidas concretas para garantir que essa população tenha acesso a cuidados adequados, integrando essas ações em um contexto mais amplo de promoção da saúde e prevenção de doenças.


Principais obstáculos

Embora a saúde bucal seja um tema que vem ganhando visibilidade, ele ainda é frequentemente negligenciado e merece atenção urgente. O cuidado com a boca transcende a questão estética, sendo uma peça fundamental da saúde integral e um determinante para a qualidade de vida dos idosos. 


No entanto, profissionais de saúde, cuidadores e familiares muitas vezes não reconhecem a importância desse aspecto vital, frequentemente priorizando outras condições médicas e subestimando o impacto dos cuidados bucais na saúde global dos idosos. A seguir, os principais entraves para assegurar uma boa saúde bucal para a população idosa brasileira.


Falta de conscientização

A primeira barreira a ser enfrentada é a falta de conscientização. Muitos subestimam a importância da saúde bucal e seu impacto na saúde geral. Problemas dentários são frequentemente vistos como menos graves ou urgentes quando comparados a outras condições médicas crônicas, como doenças cardíacas ou diabetes. No entanto, a realidade é que a saúde bucal está intimamente ligada ao bem-estar geral. Infecções bucais podem levar a complicações sistêmicas, como endocardite, e a inflamação crônica na boca pode agravar condições como diabetes. Portanto, ignorar a saúde bucal é negligenciar uma parte essencial da saúde global do idoso.


Prioridade para outras condições de saúde

As equipes de saúde geralmente focam no tratamento curativo e em demandas mais gritantes, como doenças crônicas e agudas que exigem intervenções imediatas. Doenças como hipertensão, diabetes e problemas cardíacos recebem maior atenção devido à sua gravidade e necessidade de manejo constante. Como resultado, a boca, com suas condições crônicas e silenciosas, muitas vezes permanece negligenciada, apesar de ser um foco infeccioso significativo. Infecções bucais não tratadas podem contribuir para a inflamação sistêmica, exacerbando outras condições de saúde e aumentando o risco de complicações graves.


Além disso, problemas dentários não tratados podem levar ao isolamento social, especialmente em idosos que podem sentir vergonha de sua aparência ou que experimentam dor e desconforto ao falar ou comer. Esse isolamento social pode ter impactos negativos profundos na saúde mental e emocional dos idosos, agravando sentimentos de depressão e ansiedade.


Essa situação é ainda mais grave em pacientes que dependem de cuidadores para suas necessidades diárias de higiene bucal e de saúde. 


Quando esses cuidadores não são devidamente treinados ou conscientes da importância da saúde bucal, a negligência pode ser ainda mais pronunciada.


Acesso limitado a cuidados dentários

As barreiras financeiras, logísticas e geográficas dificultam o acesso dos idosos a serviços odontológicos. Muitos planos de saúde não cobrem tratamentos dentários e o custo pode ser proibitivo. Além disso, a mobilidade reduzida e a falta de transporte adequado podem impedir os idosos de visitarem o dentista regularmente. Políticas públicas para facilitar esse acesso são imprescindíveis. Programas de odontologia domiciliar e clínicas móveis são exemplos de iniciativas que podem ajudar a levar cuidados dentários a populações idosas que, de outra forma, não teriam acesso a esses serviços.


Falta de treinamento e educação

Nem todos os médicos e cuidadores recebem treinamento adequado em saúde bucal geriátrica. Sem esse conhecimento, a importância da saúde bucal pode ser subestimada, e os melhores métodos de cuidado podem ser ignorados. Programas de educação continuada para profissionais de saúde e cuidadores são fundamentais para preencher essa lacuna. Treinamentos específicos sobre a identificação de problemas bucais comuns em idosos e a realização de cuidados preventivos podem fazer uma grande diferença na manutenção da saúde bucal dessa população.


Dificuldades de comunicação

A comunicação é um desafio significativo. Idosos com demência ou outras condições cognitivas podem não ser capazes de expressar seus problemas dentários de maneira eficaz. Isso requer uma abordagem mais proativa dos cuidadores e profissionais de saúde, que devem estar atentos a sinais não-verbais e comportamentos indicativos de dor ou desconforto bucal. Ferramentas como escalas de dor específicas para indivíduos não-verbais podem ser úteis na avaliação da dor e do desconforto nesses pacientes.


Percepção de inevitabilidade

Existe uma crença errônea de que a perda de dentes e outros problemas dentários são uma parte inevitável do envelhecimento. Essa percepção leva a negligência e falta de cuidados preventivos. Com o avanço da odontologia, é possível manter uma boa saúde bucal em qualquer idade, prevenindo doenças e promovendo o bem-estar. Campanhas de conscientização que desmistificam essa percepção podem incentivar os idosos e seus cuidadores a buscarem cuidados odontológicos regulares.


Falta de incentivo

Em muitos casos, não há um incentivo adequado para focar na saúde bucal dos idosos. As políticas institucionais e as práticas de cuidado nem sempre priorizam os cuidados dentários preventivos e de promoção de saúde. É necessário um esforço conjunto para mudar essa mentalidade, integrando a saúde bucal aos cuidados de saúde primários e promovendo políticas que incentivem a atenção a essa área. A inclusão de indicadores de saúde bucal nos sistemas de avaliação de qualidade de cuidados pode ser uma maneira eficaz de incentivar a atenção a esse aspecto vital da saúde.


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